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A Lei nº 14.010/2020 e seus impactos sobre a prescrição trabalhista

“Interpretar a lei é revelar o pensamento que anima as suas palavras” - Clovis Bevilacqua

Imagem: Divulgação/Unsplash

Diante dos muitos efeitos adversos da pandemia do coronavírus (COVID-19), houve a edição de inúmeras normas com o objetivo de ajustas a regulamentação de relações sociais e fornecer alternativas para salvaguarda dos negócios em geral e, em particular, de direitos que tiveram seu exercício ameaçado pelas medidas de distanciamento social.


Nesse contexto, foi promulgada a Lei nº 14.010/2020, cujo Projeto de Lei (PL 1179/2020) teve relatoria do Senador Antonio Anastasia (PSDB-MG). A norma estabelece o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado, com o fim de dar tratamento especial as relações entre particulares durante o período de enfrentamento a COVID-19.


Entre as disposições dessa Lei, foi criada uma causa de impedimento e suspensão do prazo prescricional a partir da sua entrada em vigor, conforme seu artigo 3º, que estabelece “Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.”


De acordo com essa Lei, portanto, o prazo prescricional não terá início (impedimento) ou ficará estagnado (suspensão) no período de 20/03 a 30/10/2020, a fim de resguardar a pretensão dos titulares de direitos, frente as dificuldades causadas pelas medidas de restrição de circulação de pessoas.


No entanto, tendo em vista a intenção manifestada pelo legislador de que a mencionada lei seja aplicada às relações jurídicas de Direito Privado, surge a dúvida se se aplicaria também ao Direito do Trabalho e, portanto, se os prazos prescricionais trabalhistas teriam sido impedidos de ser iniciados ou suspensos entre o início da vigência da Lei em 20/03 e o dia 30/10/2020.


Sem pretensão de esgotar o tema ou se debruçar sobre a posição enciclopédica do Direito do Trabalho, o presente artigo tem como objetivo abordar os pontos que norteiam a discussão quanto a aplicação, ou não, da Lei nº 14.010/2020 ao Direito Processual do Trabalho, especialmente no que se refere a prescrição trabalhista, apresentando contribuição de ordem hermenêutica a este debate.


Prescrição no Direito do Trabalho


Importante lembrar, inicialmente, que a prescrição é a perda do direito de ação pelo transcurso de determinado prazo, caracterizando a inércia do titular de um direito violado em solicitar a devida reparação. Como no brocardo latino: “O Direito não socorre aos que dormem”.


Vale mencionar, ainda, que a prescrição tem efeito relevante de pacificação social, pois impede a eternização dos conflitos com a permanente possibilidade de ajuizamento de demandas.


No Direito do Trabalho, a prescrição é norma de estatura constitucional (artigo 7º, inciso XXIX, da CF [1]), sendo relacionada entre os direitos e garantias fundamentais. O direito de ação é garantido ao cidadão que, no entanto, deve exercê-lo no prazo de dois anos a partir do término do contrato de trabalho, podendo pleitear apenas os direitos relativos aos cinco anos anteriores à distribuição da ação.


Com relação às causas que podem influir na contagem do prazo prescricional, a chamada Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) introduziu no artigo 11 da CLT os parágrafos 2º e 3º, que trazem a prescrição total do direito de ação quanto a parcelas de trato sucessivo não previstas em lei (ação em dois anos após a ciência da lesão) e, ainda, a previsão de interrupção do prazo prescricional “somente” pelo ajuizamento de ação idêntica [2].


Controvérsia


Em princípio, é possível defender a aplicação da suspensão do prazo prescricional também no processo do trabalho a partir da uma análise superficial do artigo 1º da Lei nº 14.010/2020, que estabelece o intuito da norma em regulamentar “relações jurídicas de Direito Privado”.


Contudo, a doutrina não é exatamente pacífica quanto ao fato de o Direito do Trabalho ser ramo puramente de Direito Privado. Muito embora este seja o posicionamento majoritário das cortes trabalhistas, sustentado por doutrinadores como Sérgio Pinto Martins e Maurício Godinho Delgado, houve, como ainda há, respeitáveis opiniões em sentido oposto [3].


De fato, o Direito do Trabalho regulamenta relações jurídicas que são mantidas entre partes desiguais. Assim, há quem sustente que teria natureza mista, social, ou até mesmo que seria um ramo de Direito Público, destacando-se a profusão de normas administrativas e de fiscalização do trabalho; a natureza tuitiva de normas; o grande volume de direitos irrenunciáveis e regras cogentes de caráter público e a própria natureza jurídica da empresa.


Com efeito, uma palavra pode ter diversos significados a depender do seu contexto, assim como a “clareza da norma” é uma ideia absolutamente subjetiva. Disso decorre que a simples nomenclatura adotada pela Lei nº 14.010/2020 para o novo e provisório regime jurídico não é suficiente para fixar posição pela sua aplicabilidade no processo do trabalho.


A interpretação literal dos §§2º e 3º do artigo 11, da CLT já mencionados poderia nos levar à conclusão de que a prescrição trabalhista estaria suscetível apenas a um tipo de impacto: quando existe ajuizamento de pedido idêntico anteriormente. Assim, a Lei nº 14.010/2020 não seria aplicável ao processo do trabalho por ausência de previsão legal expressa.


Por outro lado, o artigo 8º, § 1º, da CLT estabelece que o direito comum será fonte subsidiária do Direito do Trabalho [4], quando houver omissão da lei trabalhista. Logo, seria possível sustentar, sob este aspecto, a aplicação do regramento da prescrição do direito comum nas relações de trabalho, quando compatível.


É relevante mencionar que no contexto da pandemia do Covid-19 houve normas voltadas às relações trabalhistas, com especial destaque às Medidas Provisórias nº 927/2020 e 936/2020. A primeira deixou de surtir efeitos pelo decurso do prazo legal e a segunda foi convertida na Lei de nº 14.020/2020.


O artigo 23 da citada MP 927/2020 tratou, sim, da suspensão de prazo prescricional, porém, destinou-a exclusivamente à União, em relação a cobrança de débitos de contribuições do FGTS. Por sua vez, a MP 936/2020 não tratou da prescrição em nenhum momento, mesmo depois de convertida em Lei. Assim, especificamente no campo das normas de Direito do Trabalho, não houve qualquer intenção manifesta do legislador em suspender prazos prescricionais.


Mas, vale dizer, a aplicação subsidiária do artigo 3º da Lei nº 14.010/2020 às relações de trabalho encontraria suporte no princípio da interpretação favorável ao trabalhador (in dubio pro operario), ao conferir maior proteção ao crédito de natureza alimentar contra a prescrição.


A esse argumento, porém, poder-se-ia contrapor outros igualmente válidos: as medidas de isolamento social, pelo menos no que se refere às relações de trabalho no Brasil, não afetaram a possibilidade de ajuizamento de ações trabalhistas, cujo procedimento é eletrônico.


Independentemente de todos esses argumentos, a prescrição, em matéria trabalhista, não está prevista apenas na lei ordinária, ou seja, no artigo 11, da CLT, mas também, como visto, na própria Constituição Federal.


Considerando a hierarquia das normas, como cediço, não é possível revogar ou alterar dispositivo constitucional por meio de lei ordinária, caso da Lei nº 14.010/2020.


Questão Hermenêutica – O sentido da norma


Estabelecidos, ainda que de forma breve, os pontos mais comuns no debate sobre a aplicação da Lei nº 14.010/2020, é importante que o intérprete de lei lance mão da hermenêutica jurídica, buscando a intenção do legislador ao criar a norma, que tem o potencial de revelar o seu sentido e alcance.


Por isso, valem ser analisados tanto a Justificação do Projeto de Lei (“PL”) que originou a referida norma, qual seja, o PL 1179/2020 do Senado Federal, de autoria do Senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), quanto a própria estrutura da norma.


Na justificação do citado Projeto de Lei, o Senador Anastasia esclarece os motivos pelos quais propunha a norma, cujos trechos relevantes serão transcritos a seguir:


“O projeto baseia-se em alguns princípios: (1) manter a separação entre relações paritéticas (de Direito Civil e de Direito Comercial) e relações assimétricas (de Direito do Consumidor e das Locações Prediais Urbanas); (2) não alterar as leis vigentes, dado o caráter emergencial da crise gerada pela pandemia, mas apenas criar regras transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos dos códigos e leis extravagantes; (3) limitar-se a matérias preponderantemente privadas, deixando questões tributárias e administrativas para outros projetos; (4) as matérias de natureza falimentar e recuperacional foram deixadas no âmbito de projetos já em tramitação no Congresso Nacional”.


E mais adiante:


“Este projeto de lei contou com o auxílio de ilustres professores de Direito Civil, Direito Comercial e Direito Processual e juristas como Fernando Campos Scaff, Paula Forgioni, Marcelo von Adamek e Francisco Satyro, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo; José Manoel de Arruda Alvim Netto, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Rodrigo Xavier Leonardo, da Universidade Federal do Paraná, e Rafael Peteffi da Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina, além dos advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias.


A iniciativa desse projeto deve-se à incansável preocupação do presidente do Supremo Tribunal Federal ministro Dias Toffoli, com os severos efeitos econômicos e sociais da pandemia do Coronavírus (Convid-19), que liderou sua formulação, tendo a coordenação técnica do ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça, e do Conselheiro Nacional do Ministério Público e professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., docente de Direito Civil do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo”.


Nota-se que o PL 1179/2020 não menciona “Direito do Trabalho” em nenhum momento, sendo certo que o relator da norma foi assessorado por professores de Direito Civil, Comercial e Processual (Civil), com coordenação técnica de ministro do Superior Tribunal de Justiça.


Quanto à sua estrutura, a Lei nº 14.010/2020 foi promulgada com 11 (onze) capítulos, sendo eles, pela ordem de disposição: Disposições Gerais; Prescrição e Decadência; Pessoas Jurídicas de Direito Privado; Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos; Relações de Consumo; Locações de Imóveis Urbanos; Usucapião; Condomínios Edilícios; Regime Concorrencial; Direito de Família e Sucessões; e, finalmente, Disposições Finais.


“Direito do Trabalho” realmente não figura em nenhum ponto da estrutura da norma. É possível concluir, sem receio de errar, que a intenção do legislador não era, de fato, tutelar as relações de trabalho por meio da referida Lei.


Conclusão


Em que pese o fato de a Lei nº 14.010/2020 ter, de forma acertada, estabelecido um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado, com o fim de dar tratamento especial as relações entre particulares durante o período de enfrentamento da COVID-19, seu texto deixou dúvidas quanto a sua aplicação no Direito do Trabalho.


O pouco tempo de vigência da norma faz com que, até o momento, sua aplicação no âmbito trabalhista não tenha sido enfrentada pelos Tribunais, o que impossibilita afirmar com segurança como (e se) este tema será enfrentado pela jurisprudência.


Nos parece, entretanto, que entre todos os pontos aqui levantados, o abrigo da Constituição Federal à prescrição trabalhista obsta de maneira insuperável a aplicação subsidiária da Lei nº 14.010/2020 ao processo do trabalho, porque importaria em modificação do texto constitucional por lei ordinária.

 

Liv Arrobas

Especialista em Direito Empresarial

Advogada das áreas de Contratos e Compliance de ZMBS Advogados

 

[1] Artigo 7º, inciso XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;


[3] Cesarino Jr., Miguel Reale, Alfredo Montoya Melgar, Eugênio Perez Botija, Evaristo de Moraes Filho, entre outros.


[4] Artigo 8º, § 1º - O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho.


Referências:

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