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A Requisição Administrativa em tempos de pandemia


É inegável que a pandemia causada pelo novo Coronavírus (COVID-19) impactou substancialmente as relações jurídicas e interpessoais, causando uma reviravolta mundial sem precedentes, especialmente no Brasil. Países se veem obrigados a adotarem medidas excepcionais de enfrentamento ao COVID-19 em razão de sua rápida disseminação, como limitações ao direito de ir e vir, fechamento de estabelecimentos comerciais, internações compulsórias, dentre outras.


Em razão deste grave cenário pandêmico, nos deparamos com várias manchetes nos veículos de comunicação a respeito de supostos “confiscos” ou “desapropriações” pelo Poder Executivo, de bens e equipamentos pertencentes à particulares para o combate ao COVID-19 (máscaras cirúrgicas, álcool em gel, respiradores etc.). Trata-se, na verdade, do instituto denominado “requisição administrativa”, que possui características próprias e não é sinônimo de confisco e desapropriação.


A requisição administrativa é uma modalidade de intervenção do Estado na propriedade privada, que encontra amparo no artigo 5º, inc. XXV, da Constituição Federal: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Trata-se de ato administrativo cuja implementação não depende da prévia intervenção do Poder Judiciário e que pode se apresentar sob diversas facetas, ora sendo dirigido a determinados bens (móveis ou imóveis), ora a determinados serviços[1].


No cenário atual, a requisição administrativa foi citada na Lei Federal n. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional em razão do COVID-19.


Segundo a referida lei, como medidas de combate ao novo Coronavírus, as autoridades, especialmente nos âmbitos do Ministério e Secretarias de Saúde, poderão adotar a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”[2].


Em que pese a teoria não apresente maiores divergências sobre o tema, na prática podem surgir circunstâncias que coloquem em dúvida a legalidade do ato administrativo. Neste aspecto, duas situações têm chamado a atenção, sendo (i) a utilização da requisição administrativa como meio substitutivo da aquisição de produtos pelas vias ordinárias; e (ii) monetização da justa e ulterior indenização.


Sobre o primeiro ponto, nos parece claro que a requisição administrativa pressupõe a existência de uma situação calamitosa (sentido lato) – ou a sua iminência – geradora de perigo público. O caráter excepcional da medida decorre de uma interpretação sistemática do texto constitucional e da legislação infraconstitucional que regulamenta o instituto. Parece-nos lícito, portanto, diante dessa excepcionalidade, afirmar que a requisição administrativa se apresentaria como ultima ratio, ou seja, sua utilização seria legitimada na hipótese de a autoridade competente não dispor de outro meio hábil e eficiente para tutelar o interesse público.


Embora não fosse necessário, vez que a dispensa de licitação há muito está prevista no art. 24, inciso IV, da Lei de Licitações (8.666/93), vale registrar que a Lei Federal n. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020 também dispôs ser “dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus” (art. 4º). Em poucas palavras, se trata de modalidade de compra direta mediante procedimento célere que dispensa a maioria das formalidades.


Assim como na hipótese de requisição administrativa, a contratação emergencial por dispensa de licitação pressupõe uma situação anômala, porém em menor grau, segundo o nosso entendimento. Isso significa que, sendo possível à Autoridade a compra direta de determinado material, via dispensa de licitação (art. 4º, Lei 13.979/20; art. 24, inc. IV, Lei 8.666/93), sem que isso resulte em prejuízo ao interesse público, está desautorizada a adoção da requisição administrativa, sob pena de desvio de finalidade do ato administrativo e consequente intervenção do Poder Judiciário, mediante provocação de terceiros interessados.


Nesse sentido, importante são as lições de Hely Lopes Meirelles[3]:

"A requisição não depende de intervenção prévia do Poder Judiciário para sua execução, porque, como ato de urgência, não se compatibiliza com o controle judicial a priori. É sempre um ato de império do Poder Público, discricionário quanto ao objeto e oportunidade da medida, mas condicionado à existência de perigo público iminente (CF, arts. 5º, XXV, e 22, III) e vinculado à lei quanto à competência da autoridade requisitante, à finalidade do ato e, quando for o caso, ao procedimento adequado. Esses quatro últimos aspectos são passíveis de apreciação judicial, notadamente para a fixação do justo valor da indenização (...)”.

Outro ponto relevante diz respeito à fixação de eventual verba indenizatória em favor do particular que teve prejuízos causados a partir da requisição de seus bens e/ou serviços pelo Poder Público. Segundo prescrição constitucional (art. 5º, inc. XXV), embora se trate de ato lícito, a requisição administrativa gera a obrigação de indenizar se acarretar danos – emergentes e/ou lucros cessantes – ao particular, devendo a indenização ser “justa” – atributo que, ao nosso ver, é pressuposto para qualquer indenização – e “ulterior”, ou seja, posterior a requisição.


Sem adentrar aos detalhes da concepção de “justiça”, nos parece que uma indenização somente alcançaria esse status de “justa” se o montante fosse suficiente para recompor, em grau exato, todos os prejuízos suportados pelo particular, sendo necessário, para tanto, que todas as circunstâncias do caso concreto sejam ponderadas. Isso porque, não se mostra adequado que o particular, ao se sujeitar ao poder de império do Estado que lhe desapropria de seus bens, não tenha recomposto o seu poder aquisitivo anterior ao fato.


Apesar dessas considerações, o que se vê na prática é uma tentativa de pré-fixar o valor indenizatório a partir do estabelecimento de critérios geralmente utilizados em certames licitatórios, desconsiderando as nuances do caso concreto. Tais critérios, quando muito, servem de parâmetro para a monetização tão somente do bem ou serviço objeto da requisição administrativa, desconsiderando danos outros que porventura decorram desse ato administrativo e que, segundo o ordenamento constitucional, devem ser indenizados.


Por essa razão, importante que aqueles que se sujeitarem a medidas dessa natureza estejam atentos ao conteúdo, finalidade e extensão do respectivo ato administrativo, de modo a avaliar a legalidade do ato intervencionista e, se o caso, agir com vistas a evitar ou mitigar maiores prejuízos.


Rafael Temporin Bueno

Especialista em Direito Tributário e especializando em Direito Administrativo

Sócio da área de Direito Público de ZMBS Advogados

[1] DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo – 32. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 356.

[3] Direito Administrativo Brasileiro, Editora Malheiros, 37ª Ed., 2011, p. 678.

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