Os reflexos da tecnologia nos contratos, as normas legais aplicáveis e a jurisprudência atual
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A evolução dos meios de comunicação, em especial da internet, caracterizada pela sua velocidade e capacidade de eliminar distâncias, influenciou a forma de negociar contratos e de contratar pelas partes, tornando a tecnologia uma realidade presente no âmbito jurídico.
A tecnologia impactou diretamente a forma como os contratos são firmados e eventualmente a sua aplicação e interpretação no âmbito judicial. Neste cenário, os contratos eletrônicos possuem algumas características próprias e não elencadas no Código Civil, mas isto não significa que a estes também não se apliquem as regras para os negócios jurídicos.
Os Tribunais reconhecem a eficácia e validade dos contratos eletrônicos, inclusive, atribuem certas características inerentes a contratos celebrados no meio eletrônico nas resoluções dos casos concretos.
Há ainda mecanismos tecnológicos que podem ser empregados para garantir a veracidade, autenticidade e autoria dos documentos digitais, por meio de códigos matemáticos que criptografam as informações e permitem garantir a integridade dos dados do documento e sua inviolabilidade, coibindo assim eventuais alterações indesejadas ou desapercebidas no documento. É um pouco dessas características que iremos abordar neste artigo.
1. CONTRATOS ELETRÔNICOS
Podemos definir como contrato eletrônico o negócio jurídico em que duas ou mais pessoas expressam a sua vontade de contratar por meio de transmissão de dados independentemente do tipo de dispositivo usado para expressão.
Os contratos eletrônicos podem ser classificados a partir da interação humana com a máquina, nesse sentido, temos os seguintes tipos de contratos:
i. Contratos eletrônicos intersistêmicos
Nos contratos eletrônicos intersistêmicos, há a interação entre máquinas, sendo que a interação humana se limita a programar as máquinas para realizarem certas atividades. Um exemplo desse contrato é o sistema de uma loja, programado para identificar a falta de um produto e, automaticamente, providenciar a sua reposição.
Nestes contratos as cláusulas são estabelecidas previamente, sendo o meio eletrônico apenas a forma de execução do contrato. Esta modalidade é usualmente utilizada nas relações entre pessoas jurídicas visando a diminuição de custos operacionais tradicionais.
ii. Contratos eletrônicos interpessoais
Já os contratos eletrônicos interpessoais são aqueles em que as máquinas são somente o meio de comunicação entre as partes durante a elaboração dos contratos, como nos casos de contratos via e-mail, ou salas de conversação por aplicativos diversos.
Estes contratos caracterizam-se pela troca de mensagem realizadas entre as pessoas eletronicamente, a qual pode ser instantânea ou não.
iii. Contratos eletrônicos interativos.
Temos, ainda, os contratos interativos, no qual a pessoa contrata utilizando um sistema programado para ofertar os produtos e/ou serviços de um fornecedor, neste último caso, temos como exemplo os consumidores em sites de compras.
Tem-se os contratos de adesão ou condições gerais aos quais os consumidores que adquirirem os produtos, ou serviços do fornecedor estarão sujeitos e não poderão discutir, vez que a sua anuência é requisito para aquisição dos produtos / serviços.
2. NORMAS
Atualmente, não há um regramento específico voltado aos contratos eletrônicos, assim, considerando que a manifestação da vontade por meios eletrônicos, não retira a natureza de contrato, a doutrina entende que a esses negócios são aplicáveis as regras relacionadas aos negócios jurídicos e aos contratos em geral constantes no Código Civil e demais legislações vigentes.
Por isso, os contratos eletrônicos devem observar todos os requisitos de validade dos negócios jurídicos e a boa-fé. Admitem, também, toda e qualquer expressão de autonomia da vontade, salvo se a lei dispuser de forma diversa.
Ainda, deve-se esclarecer que além das características próprias dos contratos pode-se falar que há algumas características adicionais aos contratos eletrônicos relacionadas à internet, como, (i) despersonalização, ou seja, é possível ser celebrado sem um dos contratantes estar presente; (ii) a desmaterialização que consiste na dispensa de materialização do contrato na forma física, em papel; (iii) a desterritorialização e temporalidade relativizada, os quais caracterizam-se por possibilitar a negociação contratual, em tempo real, entre pessoas em diferentes localidades e fusos-horários.
3. JURISPRUDÊNCIA
Os Tribunais brasileiros vêm reconhecendo as contratações eletrônicas e a sua validade e eficácia quando atendidos os requisitos contratuais previstos no Código Civil, admitindo-se inclusive o uso de provas e evidências eletrônicas, como, por exemplo, e-mails e mensagens de aplicativos.
Nesse sentido, tem-se que o TJ/SP nos autos do processo nº 1112009-49.2018.8.26.0100, reformou a sentença da vara de origem para reconhecer a existência de um aditivo contratual ao contrato de honorários advocatícios celebrado entre as partes, em razão de conversas trocadas por meio de aplicativo de mensagens Whatsapp, entre as partes.
No caso em comento, o apelante recorreu da decisão que não havia reconhecido a celebração do contrato eletrônico entre as partes, em seu recurso aduziu que o apelado concordou por escrito com renegociação dos valores do contrato, por conta da subcontratação de um escritório de advocacia com a sua contratação para atuação especializada em outra comarca em seu benefício.
No acórdão, a fundamentação utilizada foi baseada na observância ao princípio da boa-fé, pois o apelado, após obter êxito na causa, que ensejou o pagamento dos honorários advocatícios, sustentou que não seriam devidos os valores da subcontratação, por não ter sido celebrado um aditivo contratual formal.
Ainda, o desembargador destacou que, o Conselho Nacional de Justiça, atento às necessidades atuais de velocidade e desburocratização do sistema, no Procedimento de Controle Administrativo nº 0003251.94.2016.2000000 [1], reconheceu o uso do WhatsApp como um meio válido para comunicação de atos processuais às partes. [2]
Temos aqui um caso em que o julgador atento ao requisito da dispensa de forma prescrita em lei, bem como à luz princípio da boa-fé e da autonomia da vontade reconheceu o aditamento contratual negociado entre as partes e reconheceu como legitima a contratação e pagamento ao subcontratado feito pelo advogado.
Também é aplicável aos contratos eletrônicos as regras do Código de Defesa do Consumidor, como vemos no acórdão proferido nos autos do processo da Apelação Cível nº 1.0000.16.052870-9/003, na qual, em resumo, o Tribunal reformou a sentença de 1ª instância, uma vez que reconheceu o direito de arrependimento, previsto no art. 49 do CDC, para a autora da ação, após oferta de renegociação de dívida feita pelo banco pelo aplicativo de mensagens Whatsapp. O julgador determinou que o valor pago pela autora fosse devolvido, uma vez que ela se manifestou se arrependendo pela renegociação dentro do prazo de 7 (sete) dias previsto na lei. [3]
O Superior Tribunal de Justiça também reconhece os contratos eletrônicos, no acórdão proferido no REsp nº 1.495.920, o relator Paulo de Tarso Sanseverino, que reformou o entendimento do Tribunal e vara de origem, que negaram a execução de dívida originada em contrato eletrônico, sob a justificativa de ausência dos requisitos de títulos executivos, principalmente, em razão da ausência de assinatura de testemunhas.
Para o relator, o contrato eletrônico, excepcionalmente, por sua característica de ser celebrado remotamente, normalmente, não será assinado por testemunhas, mas poderá por outras formas ter seu caráter executivo confirmado em conjunto com outras evidências. No caso, com a assinatura digital, a qual reveste de autenticidade e veracidade o documento, estará preenchida a questão da eficácia executiva, considerando assim o contrato eletrônico um título executivo extrajudicial, ainda que não contenha a assinatura de duas testemunhas.
Diante disso, temos que o Superior Tribunal de Justiça reconhece a força executiva de um contrato eletrônico assinado digitalmente e aduz que “a assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados (...). Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, é possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos." [4]
Conforme verificamos tanto o STJ quanto o CNJ já vem modernizando-se e acolhendo as questões dos contratos eletrônicos, o STJ dá um passo adiante e inova ao acrescentar à discussão dos contratos digitais as assinaturas eletrônicas, sistemas de autenticação para verificar autoria e garantir a integridade das informações.
4. ASSINATURA ELETRÔNICA
A assinatura eletrônica, como dito acima, não só é um meio hábil a formalização do negócio jurídico, como também é aceita pelos tribunais como meio de prova da existência do contrato eletrônico. A Medida Provisória nº 2.200-2/2001 regulamenta a matéria e instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), que é uma norma para regulamentar o uso de criptografia e tecnologias especiais de identificação e autenticação do signatário e são emitidos por entidades certificadoras autorizadas, que são terceiros na relação contratual.
Neste ponto, importante diferenciar a assinatura digitalizada da assinatura eletrônica, ou digital. Enquanto a assinatura eletrônica é formalizada com uso de tecnologia (ICP-Brasil) a digitalizada nada mais é que a digitalização de uma assinatura manuscrita do sujeito de direito. Não atende, por isso, os requisitos necessários para ser considerada um dos tipos de assinatura eletrônica, sendo necessária, a apresentação de outros elementos que comprovem a autoria e veracidade daquela assinatura.
Além disso, em razão dos contratos eletrônicos serem negociados e armazenados na internet eles estão suscetíveis a alterações unilaterais por uma das partes. Somente a assinatura digital pode garantir a integridade e autenticidade das informações e condições negociadas, pois ela é única e gerada individualmente para cada documento.
Por outro lado, não se obsta a utilização de outro meio de comprovação de autoria e integridade dos documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for apresentado o documento, conforme disposto na Medida Provisória nº 2.200-2/2001.
A assinatura eletrônica por meio do ICP-Brasil não é requisito de validade dos contratos eletrônicos, mas constitui ferramenta muito valiosa que auxilia a verificação da veracidade das informações, como verificado.
5. CONCLUSÃO
A revolução tecnológica trouxe grande impacto nos negócios jurídicos, o que apesar de trazer características próprias a esse tipo de contrato, não desconfigurou a sua essência.
Assim, as partes ao manifestarem sua vontade devem observar os requisitos do negócio jurídico, redobrando o cuidado para que a tecnologia escolhida também atenda aso requisitos legais, de forma a atribuir veracidade, autenticidade e maior segurança jurídica para as partes contratantes, como é o caso da assinatura digital.
Não obstante, ainda aconselha-se que as partes tomem as precauções negociais usuais e definam detalhadamente todas as condições do contrato, da mesma forma que se faz em contratos em papel, a fim de prevenir desencontros na relação estabelecida entre as partes, evitando discussões que possam culminar em uma ação judicial futura.
Ana Carolina Ueda Silva Gabriel
Especialista em Direito dos Contratos
Advogada das áreas de Contratos e Societário de ZMBS Advogados
-- [1] CNJ: 0003251.94.2016.2000000. PCA - Procedimento de Controle Administrativo. Rel. DALDICE SANTANA. 23ª Sessão Virtual. Data do Julgamento 23.06.2017. [2] Tribunal de Justiça de São Paulo. TJ/SP: 1112009-49.2018.8.26.0100. Apelação Cível. Relator: Des.: Virgilio de Oliveira Junior. Data do Julgamento: 31/08/2020, 21ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação 14/09/2020. [3] Tribunal de Justiça de Minas Gerais. TJ/MG Apelação Cível nº 1.0000.16.052870-9/003. Relator(a). Des.(a) Ramom Tácio. Data do Julgamento: 02/05/2018. 16ª CÂMARA CÍVEL. Data da Publicação: 03/05/2018. [4] STJ - REsp: 1495920 DF 2014/0295300-9, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 15/05/2018, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/06/2018.